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GERHART HAUPTMANN
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O GUARDA-CANCELA THIEL
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Todos os domingos, o guarda-cancela Thiel ocupava o seu lugar na igreja de Neu-Zittau, excepto quando o serviço na passagem de nível ou alguma doença que o obrigasse a ficar de cama o impedia. Em dez anos, apenas duas vezes estivera doente. Na primeira, devido a um pedaço de carvão lançado por uma máquina em andamento que o lançara para a valeta com uma perna despedaçada. Na outra vez devido a uma garrafa de vinho que voara do comboio rápido quando este passava furiosamente e que lhe acertara em cheio no peito. Para além destas duas infelizes ocorrências não houve mais nada que o impedisse, sempre que se encontrava livre, de frequentar a igreja.
Nos primeiros cinco anos calcorreara sozinho o caminho que passava por Schön-Schornstein, uma colónia nas margens do Spree em direcção a Neu-Zittau. Um belo dia apresentou-se na companhia de uma jovem franzina e de aparência doentia que, comentava-se, pouco condizia com a sua avantajada figura. E eis que numa bela tarde de domingo se apresenta festivamente com esta pessoa frente ao altar da igreja, afim de se ligar a ela matrimonialmente para toda a vida.
Dois anos se escoaram durante os quais esta delicada donzela se apresentou a seu lado no banco da igreja; dois anos miraram, ao lado do rosto bronzeado pelo sol de Thiel, os olhos desta mulher débil e esquálida, o livro de cânticos do marido.
Repentinamente reaparece o guarda-cancela sozinho, tal como antigamente.
É que num dos passados dias úteis os sinos da igreja haviam dobrado a finados. E é tudo. As pessoas comentavam que nada havia mudado na sua rotina. Os botões do seu impecável uniforme brilhavam polidos como dantes; o seu cabelo ruivo, estava brilhante e bem penteado como sempre; apenas a ampla e peluda nuca se encontrava um pouco descida e ouvíamo-lo recitar a palavra divina ou cantar mais fervorosamente do que nunca. A opinião geral era a de que a morte da mulher pouco ou nada o afectara. E esta opinião confirmou-se quando Thiel se casou, passado um ano, pela segunda vez, com uma rapariga refeita, uma vaqueira de Alte-Grund. Até o Pastor se permitiu fazer alguns comentários quando Thiel lhe veio dizer que queria casar-se:
«Então quer casar outra vez?»
«Com os mortos não posso gerir a economia doméstica, senhor Pastor!»
«Sim, sim! Mas quanto a mim está com um pouco de pressa.»
«Tenho o pequeno, Senhor Pastor.»
A mulher de Thiel morrera de parto e a criança que dera à luz, viveu e foi-lhe posto o nome de Tobias.
«Ah, sim, o pequeno!»
Disse o padre e fez um movimento que mostrava distintamente que ainda se lembrava dele.
«Isso é outra coisa. Onde é que o tem deixado enquanto está a trabalhar?»
Então Thiel contou como entregara Tobias a uma velha mulher que uma vez quase que o deixou queimar e que ele uma vez também o deixara cair do colo, sem felizmente ter sofrido outras consequência para além de um grande galo na cabeça. Isto não pode continuar assim, disse ele, e ademais, o garoto, fraco como está precisa de cuidados permanentes. Assim e porque havia prometido à defunta zelar sempre e permanentemente pelo bem-estar da criança, tinha de se decidir a dar esse passo. As pessoas não fizeram qualquer objecção ao facto deste novo par ter passado a frequentar a igreja todos os domingos. A antiga vaqueira assentava ao guarda que nem uma luva. Ela era apenas uma meia cabeça mais baixa que ele e superava-o na plenitude dos membros. O seu rosto era tão desenvolvido como o dele, mas ao contrário do guarda, a sua alma transparecia através dele.
Quando Thiel patenteou o desejo de fazer da segunda mulher uma incansável trabalhadora, uma economista exemplar, esse seu desejo foi, de maneira surpreendente, realizado. Sem o saber, três coisas lhe haviam sido proporcionadas com a consorte: um severo e despótico temperamento, feitio quezilento e paixão brutal. Mal passara meio ano e já toda a gente sabia lá na aldeia quem comandava o regimento na pequenina casa do guarda. Todos o lamentavam.
«Foi uma sorte para aquela "criaturinha" ter apanhado um cordeirinho tão manso como o “Thiel”», não deixavam de vociferar os homens; «se desse com alguns de certeza que não brincava; porque um “animal” tem que ser domesticado. E quando não pode ser de outra maneira, porrada para cima sem dó nem piedade e era ver como ficava mansinha. Mas o pobre do Thiel não é nem por sombras o homem para a endireitar com pancadaria.»
Que as pessoas se exaltassem, não ia por isso doer a cabeça a Thiel. Os infindáveis sermões da mulher deixavam-no por regra sem hipótese de falar sobre si e quando uma vez respondeu, o ritmo do seu discurso era tão arrastado e o tom tão suave e desapaixonado que estava em contraste evidente com a estridente gritaria da mulher. O mundo exterior parecia praticamente indiferente para ele: era como se estivesse intimamente convencido de que havia de ser amplamente compensado por todo o mal que ela lhe fazia.
Não obstante a sua imperturbável fleuma, tinha momentos em que não permitia que brincassem com ele. A sua inocência infantil, a sua índole condescendente, ganhavam então uma aparência de firmeza, numa índole tão indomável que a própria Lene não se atrevia a enfrentar.
Todavia, os momentos em que se evidenciavam estes traços do seu carácter tornaram-se com o tempo cada vez mais raros e acabaram mesmo por desaparecer. Uma certa oposição eivada de paciência com que ele confrontava a arrogante Lene nos primeiros anos, acabou, por seu turno, por desaparecer totalmente. Não se sentava com a mesma indiferença à mesa para jantar e após a refeição havia sempre discussão, se a não tivesse acalmado antes. E nunca deixava de lhe pedir no fim para voltar a ser boazinha.
Nunca mais o seu Posto, situado no seio da floresta brandeburguesa de pinheiros, voltara a ser o seu querido apeadeiro. Os silenciosos, abandonados pensamentos para com a sua defunta tornaram-se também interditos. Nunca saía de casa contrariado, muito antes pelo contrário com desmedida rapidez, enquanto que antigamente contava frequentemente os minutos e segundos que faltavam para a separação.
Ele que, com a primeira mulher estivera unido com o mais espiritualizado amor, caiu, devido ao peso de brutal pressão, na violência da segunda mulher de quem ultimamente desejava separa-se desse para onde desse; depois, sentia por vezes remorsos destas peripécias e precisava de ser ajudado por algum meio extraordinário afim de superar tais contrariedades. Assim, declarou a sua casinha de guarda, o troço da via de que se ocupara, muito em segredo, terra sagrada exclusivamente consagrada aos manes e aos mortos. Lançando mão de variados pretextos, conseguiu impedir que a mulher para aí o acompanhasse. Ela nunca soube que direcção tomar para o seu «quarto» cujo número não poderia encontrar.
Assim, conseguindo meticulosamente partilhar os tempos mortos com os finados e os vivos, atingia Thiel o seu objectivo de apaziguar, de facto, a sua consciência.
No entanto, muitas vezes e especialmente em momentos de solitária meditação, quando viva e entusiasticamente se encontrava em ligação com a defunta, avaliava com clarividência a sua actual conjuntura de que acabava por sentir repugnância. Sempre que estava a trabalhar limitava a sua comunicação espiritual com a finada a uma multidão de recordações dilectas do tempo da sua vida em comum. Todavia, noite dentro, quando a tempestade de neve cobria os pinheiros e a via-férrea, nos abismos da meia-noite, dirigia-se o guarda para a capela à luz da sua lanterna.
Com uma fotografia ornamentada da morta à sua frente em cima da mesa, livro de cânticos e bíblia abertos, lendo e cantando alternadamente através da longa noite, interrompido apenas de vezes em quando por comboios enfurecidos, caía em êxtase e via, representada na sua frente e viva, a sua falecida mulher.
O seu posto de trabalho que ocupava já há dez anos sem interrupção, prestava-se na sua localização a estimular as suas tendências místicas. Nas quatro direcções do vento, pelo menos a três quartos de hora de caminho afastado de qualquer habitação, situava-se o seu pequeno santuário, embutido na densa floresta junto a uma passagem de nível cuja cancela estava a cargo de Thiel.
No Verão passavam-se dias, no Inverno semanas sem que um rasto humano, à excepção do guarda e seus colegas, cruzasse a via-férrea. O tempo e a roda das estações eram os únicos a trazer mudanças a este ermo.
Com excepção dos dois acidentes que lhe interromperam o trabalho, era fácil para Thiel dar-se conta de qualquer evento. Há quatro anos passara o comboio especial imperial que levava o imperador para Breslau. Numa noite de Inverno, o rápido atropelou um cabrito-montês. Num dia quente de verão, o nosso guarda encontrou, num troço em revisão, uma garrafa de vinho rolhada que lhe escaldou as mãos e que lhe pareceu ser excelente, já que após a remoção da rolha expeliu um jacto, dando-lhe a sensação de que fermentava.
A garrafa, que Thiel deixou à beira de um lago da floresta pouco profundo a esfriar, acabou por se extraviar, de maneira que passados anos ainda lamentava a sua perda.
Por trás da sua casinha havia um poço que lhe propiciava uma certa distracção, já que de vezes em quando iam lá beber alguns trabalhadores da via-férrea ou dos telégrafos que naturalmente lhe concediam dez reis de conversa. Também o guarda-florestal aparecia de quando em vez para sacudir o pó.
Tobias desenvolvia-se assaz lentamente; só aos dois anos aprendeu a falar e mal, e também a andar. Mostrava grande inclinação para o pai e, compreensivelmente, reacendeu-se-lhe o amor paternal e, na medida em que este aumentava, diminuía o amor da madrasta por Tobias entrando em declínio acelerado quando, passado um ano, Lene deu também à luz um filho.
Dali para o futuro começou para Tobias uma vida difícil. Era, na ausência do pai, continuamente torturado e, sem qualquer recompensa, era obrigado a colocar as suas ténues forças ao serviço do pequeno berrão e cada vez com maior frequência. A cabeça transformou-se-lhe numa estranha circunferência; o cabelo ruivo cor de fogo e o rosto cor de giz, davam, combinados com o resto da sua triste figura, uma deselegante e lastimável impressão.
Sempre que a figura grotesca de Tobias transportava nos braços o robusto irmãozinho em direcção ao Spree, ouviam-se anelos cordiais por trás das janelas das casitas que as pessoas não se atreviam a dirigir directamente a Thiel mas que a ele diziam respeito; ninguém olhava para ela e o guarda fingia não perceber os acenos que os bem-intencionados vizinhos lhe faziam.
II
Numa manhã de Junho, por volta das sete horas, chegou Thiel do trabalho. A mulher, mal acabara de o saudar, começou logo a lamentar-se como de costume. O arrendamento do campo, que até aqui havia fornecido as batatas para a família, havia semanas que fora cancelado sem que até agora Lene conseguisse arranjar outro terreno. Muito embora o campo para cultivo estivesse ainda sob a sua responsabilidade, Thiel teria de procurar outro, já que ninguém tem culpa de ser preciso uma quantidade desmesurada de dinheiro para comprar dez sacos de batatas. Thiel rosnava agora e, dando pouca atenção ao que Lene estava a dizer, dirigiu-se logo à cama do filho mais velho, que partilhava com ele nas noites em que não estava a trabalhar. Deixou-se cair na cama e pôs-se a olhar com bonomia e ao mesmo tempo com expressão preocupada estampada no rosto a criança que dormia e que, dali a pouco, despertava finalmente. Nos olhos profundos do garoto desenhou-se uma tocante alegria. Apressou-se a erguer a mão na direcção da do pai enquanto a boca se abria num sorriso frugal. O pai ajudou-o, ao mesmo tempo que, ao puxar-lhe a fralda, foi assaltado por algo como uma sombra que lhe percorreu o rosto ao aperceber-se que a face direita estava um pouco inchada e que evidenciava marcas vermelhas.
Quando Lene, ao pequeno-almoço, com grande ardor, voltou a falar de negócios, ele cortou-lhe a palavra com a notícia de que o chefe das oficinas lhe cedera um pedaço de terra paralela à linha, imediatamente a seguir à casa do guarda, gratuitamente, ao que parece, porque já a não queria.
A princípio, Lena nem queria acreditar. A pouco e pouco foram-se-lhe dissipando as dúvidas para ficar realmente bem disposta. As perguntas acerca do tamanho e do valor do terreno, bem como outras, seguiam-se polidamente e quando veio a saber que para além de tudo isto ainda tinha duas árvores de fruto, ficou louca de alegria: Quando já não havia mais nada para falar, veio à baila a campainha do merceeiro que se fazia ouvir a todas as portas e que anunciaria a novidade por toda a aldeia.
Enquanto Lena se dirigia para o escuro cubículo carregando mercadoria, do merceeiro, ocupava-se o guarda em casa exclusivamente de Tobias.
A criança, sentada em cima dos seus joelhos, brincava com algumas pinhas que trouxera do bosque.
«O que queres ser?» Perguntou-lhe o pai. E à pergunta estereotipada respondeu do mesmo modo Tobias: «Guarda de passagem de nível.» Não era brincadeira, já que o sonho do guarda era que o filho fosse alguém; acalentava empenhadamente a esperança de que Tobias, com a ajuda de Deus atingisse na vida algo de extraordinário. Quando dos lábios avermelhados do garoto surgiu a resposta «guarda-cancela», cujo significado naturalmente não conhecia, começou a iluminar-se em crescendo o rosto de Thiel, irradiando felicidade interior.
«Vai brincar Tobias, vai!», disse pouco depois enquanto acendia o cachimbo numa brasa e a criança se afastava logo a seguir cheia de tímida alegria, para a porta. Thiel despiu-se, foi para a cama e adormeceu, não sem olhar pensativamente durante um certo tempo fixamente o tecto acachapado.
Acordou por volta do meio-dia, vestiu-se e, enquanto a mulher preparava, na sua barulhenta rotina, o pequeno-almoço, dirigiu-se para a rua onde apanhou logo Tobiaschen que segurava nos dedos um pedaço de cal que esgaravatou de um buraco e que meteu na boca. Agarrou-lhe na mão e levou-o para o Spree, negro e brilhante entre os frágeis choupos cheios de folhas, cerca de oito casitas mais abaixo. Thiel sentou-se num bloco de granito que se encontrava na margem. As pessoas tinham-se habituado a vê-lo neste lugar sempre que o tempo lho permitia.
As crianças tinham inclinação especial para ele e chamavam-lhe «tio Thiel». Ensinava-lhes muitos jogos de que se lembrava da sua juventude; mas o melhor conteúdo das suas recordações era no entanto para Tobias.
Cortava-lhe setas que voavam mais alto do que as dos outros garotos. Fazia-lhe também pipas e cantava-lhe a canção do comboio com a sua frágil voz de baixo enquanto acompanhava com batimentos do cabo de osso da navalha na crosta de uma árvore.
As pessoas não podiam com os seus gritos palermas. Não conseguiam entender como é que aquele ranhoso parvalhão podia fazer tão triste figura. Mas no fundo deviam estar contentes, uma vez que as crianças estavam em boas mãos. Para além disso Thiel tomou a peito ajudá-las a fazer a maior parte dos deveres escolares, apoiava-os na aprendizagem dos textos e dos cânticos bíblicos e soletrava com os pequenos a-b-ab, d-u-du, etc.
Após o almoço deitava-se um pouco a descansar e a seguir tomava o café da tarde após o qual se mudava afim de ir trabalhar. Precisava bastante tempo para isso bem como para todas as suas tarefas; em gestos automatizados pela rotina de anos, as suas preocupações concentravam-se nos objectos distribuídos pela pequena cómoda de nogueira: facas, livros de notas, pente, um dente de cavalo; o antigo relógio no bolso das calças. Um pequeno livrinho em papel vermelho era folheado com especial interesse. Durante a noite guardava-o debaixo da travesseira e durante o dia no bolso do peito do fato de trabalho. Na etiqueta, sob a capa do livro, estava escrito à mão com a sua letra enfeitada mas desajeitada: «Livro de Poupanças de Tobias Thiel».
O relógio de parede com a sua grande pêndula e mostrador amarelado marcava um quarto para as seis quando Thiel se foi embora transportando uma pequena canoa de sua propriedade para o rio. Muitas vezes ficava sentado pensativamente na margem de lá, regressando depois ao povoado. Finalmente virava para um caminho do bosque, encontrando-se passados alguns minutos em plena floresta ululante de pinheiros, cuja enorme massa de agulhas verde-escuro se assemelhava às ondas empurradas pelo mar.
Caminhava silencioso por cima dos musgos e camadas de caruma do chão da floresta como se de feltro se tratasse. Encontrou o seu caminho sem levantar os olhos, guiando-se aqui pelas colunas cor de ferrugem da mata, ali pelo espesso entrelaçamento das árvores ainda tenras, mais adiante pelos extensos viveiros de árvores sombreados por pinheiros esguios plantados para protecção dos jovens. Uma esbranquiçada, transparente bruma, impregnada de toda a espécie de perfumes, elevava-se do solo tornando a forma das árvores imprecisa. Um grande e leitoso céu desabava em cima da copa das árvores. Extasiantes trilos impregnavam, numa toada rangente, incansavelmente o ar cinzento. Charcos escuros enchiam a profundidade do caminho espelhando a turbada natureza mais turva ainda.
«Um tempo horrível», ia pensando Thiel, quando acordou de meditação profunda e levantou os olhos. Subitamente, porém, os seus pensamentos tomaram nova direcção. Apercebeu-se de que se esquecera de qualquer coisa em casa, que acabou por identificar como sendo o pão com manteiga que lhe passou despercebido ao rebuscar os bolsos e que precisava comer quando chegava a meio termo da longínqua hora de jantar. Permaneceu, indeciso, uns momentos sentado e, repentinamente, deu meia volta e voltou para a aldeia.
Chegou rapidamente ao Spree, atravessou com algumas remadelas para o outro lado, poucos momentos depois subia, a transpirar por todos os poros, o caminho pouco íngreme para o povoado. O caniche remeloso do merceeiro estava deitado no meio do caminho. Na paliçada betumada do pátio de uma pequena propriedade de um trabalhador, estava empoleirada uma gralha cendrada. Afastava as penas, sacudia-as, meneava a cabeça, soltava um cré-cré que flagelava os ouvidos, e voava com um sibilante bater de asas para se deixar levar pelo vento em direcção à floresta.
Dos pescadores e madeireiros que constituíam os habitantes da aldeia, não se viam vinte. A tranquilidade do silêncio foi repentinamente cortada por gritos de tal modo estridentes que Thiel parou instintivamente de correr. Uma torrente de sons dissonantes que parecia sair de uma janela aberta de uma casinha atarracada bem sua conhecida, feriu-lhe o ouvido.
Procurando silenciar tanto quanto possível o ruído dos seus passos, deslizou o mais próximo que lhe foi possível de modo a poder ouvir distintamente a voz da mulher. Aproximou-se um pouco mais e a maior parte das palavras tornara-se agora compreensível.
«O quê? Minha malvada sem vergonha! Terá a criança de gritar com fome que nem um capado? Como é isso? – espera que eu já te ensino a tomar atenção! – Terás de meditar nisso.» Calou-se por alguns momentos, depois ouviu-se um ruído, como de tecidos a roçagar, para logo a seguir descarregar uma saraivada de palavras injuriosas.
«Mas que grande estupor», tudo rapidamente, «queres tu dizer, que por causa de uma merdice como tu sou obrigado a deixar o meu querido filho morrer de fome? Cala-me essa boca!», exclama num imperceptível queixume como se alguém pudesse ouvi-la, «ou obrigo-te a engolir uma dose tal que hás-de ficar empanturrado durante oito dias!» E a lamúria continuou.
Deu-se conta de como o seu coração batia descompassado. Começou a tremer ligeiramente. Distante, olhos fixos no chão, apartava continuamente, com a mão robusta e grosseira, uma madeixa de cabelo para o lado que, teimosa, lhe tombava de novo na fronte queimada pelo sol e que, durante um segundo pareceu descontrolá-lo. Um acesso de cólera intumesceu-lhe os músculos e obrigou-o a cerrar os punhos, para abrandar depois e desaparecer completamente. Com passos hesitantes, entrou no acanhado pátio de tijoleira de sua casa. Cansado, subiu lentamente a rangente escada de madeira.
«Irra, irra, irra», exclamava enquanto subia; entretanto ouviu três vezes repetidas alguém dizer, com sinais evidentes de cólera e desprezo «Seu desgraçado, infame, manhoso, maldoso, covarde palhaço!»
As palavras, em crescendo, surgiam em catadupa, com uma voz que, de vezes em quando, denotava esforço «Seu tratante, queres bater na minha criança? É isso, garoto miserável? Atreves-te a dar no focinho da pobre criança indefesa? Como é isso então? Como é? Não quero emporcalhar-me, senão...»
Neste preciso momento Thiel abre a porta do quarto, pelo que a surpreendida mulher ficou com o final da frase encascada na garganta. Estava lívida de ódio; os lábios tremiam-lhe maliciosamente; curvou-se, pegou no tacho do leite com que procurou encher um biberão. Largou no entanto este trabalho a meio, já que grande parte do leite do biberão se entornara na mesa e, sem dizer uma palavra, excitada, voltava ora para este trabalho, ora para o outro sem no entanto se fixar em qualquer deles mais que um instante. Animou-se finalmente e, de modo a vincar bem a sua presença ao marido, interpelou-o censurando-lhe a sua atitude de vir para casa a horas fora do costume; «não quereria certamente passar a andar a escutar às portas! Era agora só o que faltava...», disse, acrescentando que tinha a consciência tranquila e que não precisava de baixar os olhos à frente de ninguém.
Thiel pouco ligou ao que ela dizia. O seu olhar, durante um momento em que parecia, violentamente, ter de reprimir algo de temível que lhe veio ao pensamento, fixou-se em Tobiaschen. Depois, a sua fisionomia tensa voltou a ficar serena logo que os seus olhos cintilantes e estranhos como que apalparam a mulher ao pousarem furtivos e concupiscentes por instantes nos seus membros rechonchudos, procurando depois ascendê-los. Excitada, o busto cheio e seminu, dilatava-se ameaçando romper o espartilho, e a saia arregaçada realçava-lhe ainda mais a largura das ancas, parecendo irradiar uma força indómita, inelutável que subjugava Thiel.
Leve como uma teia de aranha e ao mesmo tempo firme como uma rede de ferro, agarrou-se apaixonadamente a ele, envolvendo-o dominadora, dulcificante, avassaladora…
O estado em que se encontrava não lhe permitira articular uma palavra que fosse e muito menos algo que a ofendesse. Assim, Tobias não teve outro remédio senão agachar-se a um canto, cheio de medo e lavado em lágrimas, a ver como o pai também se esquecera dele e, procedendo segundo o único ensinamento de que se lembrava da mãe, pegou no pão esquecido em cima do escabelo e com uma pequeno, distraído, aceno de cabeça, desapareceu.
III
Embora Thiel percorresse o isolado caminho do bosque o mais depressa que pôde, chegou 15 minutos depois da hora regulamentada ao local de destino.
O guarda auxiliar que, devido às frequentes amplitudes térmicas contraíra a tuberculose, e que alternava com ele o serviço, encontrava-se já pronto para sair, no pequeno e arenoso cais da casinha cujo número enorme, preto em fundo branco, brilhava através dos troncos.
Os dois homens cumprimentaram-se, trocaram algumas palavras e separaram-se.
Um desapareceu no interior do casebre, o outro tomou pelo caminho que era a continuação daquele por onde viera Thiel. A sua tosse convulsiva ouvia-se a princípio mais próxima, depois mais longínqua através dos troncos e com ele desapareceu o único sonido humano deste ermo.
Hoje, como sempre, Thiel começou a preparar a seu modo, para passar a noite, o acanhado e quadrangular espaço de pedra da casa do guarda.
Fê-lo mecanicamente, ao mesmo tempo que o seu espírito se preocupava com a impressão das últimas horas. Colocou o jantar em cima da pequena mesa castanha, no vão de uma das janelas, donde podia ver confortavelmente o troço da via. Logo a seguir, acendeu o pequeno fogão enferrujado e colocou-lhe em cima um tacho com água a aquecer. Depois de, finalmente, dar uma arrumação na ferramenta, pás, stock de parafusos, etc., foi limpar a lanterna, reabastecendo-a também de petróleo.
Enquanto tudo isto se passava, o relógio dava três estridentes pancadas que se repetiram enquanto um comboio saía de Breslau, a estação mais próxima. Sem a mínima pressa, continuou Thiel ainda um bom pedaço no interior da casinha para, finalmente, sair de cartucheira e bandeira na mão e começar a percorrer, lentamente e com andar descontraído, pelo estreito e rangente carreiro, os vinte passos que o separavam da passagem de nível. A cancela fechava e abria Thiel, respectivamente, antes e depois de cada comboio que passava, muito embora fosse um caminho em que apenas raramente se vislumbrava vivalma.
Acabara o seu trabalho e encostava-se agora, vigilante, ao ferrolho da cancela.
A linha seguia, rasgando, rectilínea, pela direita e pela esquerda, a imensa floresta verde; em ambos os lados se amontoava a caruma, deixando a meio um caminho de saibro avermelhado espalhado, também preenchido pelas agulhas. Os negros e infindáveis carris paralelos, perfeitamente iguais em toda a sua extensão, formavam uma enorme rede, cujos delgados fios no norte e sul longínquos, se juntavam num ponto do horizonte.
Havia-se levantado o vento que empurrava leves ondas em direcção ao horizonte e ao aterro da via.
Nos fios, que como se fora o tecido de uma aranha gigante, de poste para poste, agarravam-se em espessas camadas bandos de aves chilreantes. Um pica-pau sobrevoava jovial a cabeça de Thiel que não se dignava sequer lançar-lhe um olhar de apreço. O sol, que acabava de pender atrás da periferia de espessas nuvens, para mergulhar no mar imenso das crutas das árvores, vazava torrentes de púrpura em cima da floresta. As arcadas de colunas de troncos de pinheiros, para lá do aterro, iluminavam-se todas, de dentro para fora, brilhando como ferro.
Também os carris começaram a brilhar, ardentes serpentes iguais, mas que expiraram primeiro; e agora o brilho subia lentamente, de baixo para cima, primeiro dos troncos das árvores, depois, a parte mais densa dos cimos empurrava para trás a luz a decompor-se e por último, apenas o roçar do tremeluzir avermelhado da parte mais exterior dos cimos. Silenciosa e festiva, chegou ao fim a grandiosa representação.
O guarda ainda continuou imóvel junto ao talude. Finalmente moveu-se. Um ponto escuro no horizonte que parecia materializado e assente num suporte, precisamente onde os carris convergiam, aumentava de volume de segundo para segundo. Repentinamente vemo-lo animar-se e aproximar-se cada vez com maior intensidade, por fim um rugir que se aproxima. Através dos carris comunicava-se um vibrar e um zumbido, um tinido rítmico, um surdo estridor cada vez mais barulhento, por fim um dissímel rugir semelhante a um tropel de cavaleiros que se aproxima.
Um arfar e um bramido intermitentes e cada vez mais intensos, ao longe, através do ar que depois, repentinamente, rasga o silêncio. Um estrondear enfurecido preenche o espaço, os carris curvam-se, a terra treme – um sopro forte – uma nuvem de pó, uma fumaçada enorme e o monstro negro passava. Da mesma maneira que surgiram, os ruídos foram-se extinguindo. A poeira desapareceu. Reduzido a um ponto, o comboio perdeu-se no horizonte e o silêncio costumeiro caiu no canto sagrado do bosque.
»Minna«, sussurrou o guarda, como acordando de um sonho; regressou à casota e fez um café fraco. Sentou-se e, bebendo um gole de vezes em quando, pôs-se a ler um pedaço sujo de papel de jornal que apanhara num sítio qualquer da zona do apeadeiro. À medida que se ia apoderando dele, a pouco e pouco, um estranho desassossego, colocou-o em cima do fogão, que impregnava a peça e desabotoou o casaco e o colete para se aliviar. Como não desse resultado, levantou-se, foi buscar uma pá a um canto e dirigiu-me para o pequeno terreno que lhe haviam oferecido. Era uma estreita tira de areia, coberta de ervas daninhas. Como espuma alva de neve, os ramos das duas pequenas árvores de fruto que aí se encontravam, ostentavam o esplendor das jovens flores.
Thiel ficou em silêncio, e um prazer harmonioso envolveu-o brandamente.
Agora, ao trabalho!
A pá penetrou a terra fértil; os torrões húmidos caíam surdos para trás e esboroavam-se uns nos outros. Durante um pedaço cavou ininterruptamente. Depois parou repentinamente e disse, num tom bem audível, enquanto abanava a cabeça: «Não, não, isto assim não dá», e logo a seguir «Não, não, isto assim não dá mesmo».
Veio-lhe repentinamente à ideia que agora a Lene viria naturalmente de vezes em quando para cultivar o terreno, razão pela qual iriam decerto surgir problemas no amanho doméstico. E repentinamente cambiou a sua alegria acerca da posse do campo, em desprazimento. Apressado, como se tivesse na ideia fazer algo de errado, tirou a pá da terra e levou-a de novo para a casinhota. Uma vez aqui chegado, ei-lo mergulhado de novo em profunda cogitação. Não sabia bem porquê, mas a perspectiva de ter Lene durante todo o dia a trabalhar a seu lado, era para ele insuportável, muito embora tentasse reconciliar-se tanto quanto possível com a situação. Era como se tivesse algo de precioso para defender, como se alguém ameaçasse invadir algo que lhe era sagrado, e instintivamente retesaram-se-lhe os músculos numa ligeira cãibra, ao mesmo tempo que lhe aflorava aos lábios um riso de desafio. O eco deste rir amedrontou-o, levantou os olhos, perdendo assim o fio das suas reflexões. Ao retomá-lo, regressou instantaneamente ao estado anterior. E repentinamente rasgou algo semelhante a uma cortina espessa e negra em dois pedaços, e o enevoado desapareceu-lhe dos olhos. Sentiu-se como se tivesse despertado dum pesadelo de morte que durara dois anos e estivesse a contemplar agora com céptico abanar de cabeça todo este absurdo que lhe parecia que tinha praticado. As impressões das últimas horas, a juntar à triste história do filho mais velho, continuavam a aflorar-lhe a memória penetrando-lhe percucientemente a alma. Pena e tristeza apoderaram-se dele, bem como uma grande vergonha que durante todo este tempo carregara com humilhante sofrimento, já que não tinha sabido cuidar daquela querida criatura indefesa, e não encontrara a força necessária para confessar o seu sofrimento.
As censuras e negligências que o atormentavam, deram origem a uma grande fadiga e, assim, curvado, colocou a fronte em cima da mão que havia colocado em cima da mesa.
Permaneceu um bocado nesta posição, balbuciando, com voz abafada, por várias vezes o nome de «Minna».
Um rugido e um zumbido ao mesmo tempo, como uma imensa quantidade de água, feriram-lhe o ouvido; fez-se escuro à sua volta, abriu rapidamente os olhos e acordou. Os seus membros tremeram-lhe, o suor do medo experimentado saía por todos os poros, o pulso batia irregular, tinha a cara humedecida de lágrimas.
Escurecera completamente. Queria lançar um olhar para a porta, sem saber para onde se voltar. Levantou-se a cambalear, ainda de coração apertado. Lá fora, o bosque sussurrava como a ressaca das ondas, o vento fustigava a janela da casota com chuva e granizo. Thiel tacteava indefeso com as mãos a toda a volta. Durante um momento andou como um bêbado; repentinamente porém um clarão ofuscante azulado, como se fossem gotas de luz sobrenatural, cortou, abafadiço, a negra atmosfera. Este momento foi suficiente para o guarda voltar a si. Pegou na lanterna, que por sorte conseguira encontrar, e neste momento a trovoada lavrada no céu da noite, recrudesceu na orla da janela. A princípio ecoando longínqua, precipitou-se cada vez mais próxima em curtas, ondeantes e agitadas ondas metálicas, em ribombos crescentes, até atingir um clímax descomunal a inundar finalmente toda a atmosfera, retumbante, até que finalmente, espaçada, desapareceu bramindo. Os vidros tilintaram, a terra tremeu. Thiel acendera a luz. O seu primeiro olhar, após ter recobrado a calma, dirigiu-se para o relógio. Faltavam apenas cinco minutos para a chegada do comboio rápido. Como pensou não ter ouvido o sinal, dirigiu-se tão rápido quanto a tempestade e a escuridão lho permitiram, para a passagem de nível. Quando se ocupava ainda a fechar a cancela, soou o sinal da campainha. O vento despedaçou-lhe os sons, espalhando-os em todas as direcções. Os pinheiros curvavam-se e friccionavam mutuamente com grande chiadeira, os ramos em todas as direcções. Durante um momento, a lua ficou visível, como se fora um prato dourado por entre as nuvens. À sua luz podia ver-se o arranhar do vento nos negros cimos dos pinheiros. Os caules e ramos dos vidoeiros da linha oscilavam e esvoaçavam fantasmagóricos como a cauda de um cavalo. No meio, permaneciam as linhas dos carris que, brilhantes da humidade, reflectiam o pálido luar numa mancha única.
Thiel tirou o boné da cabeça. A chuva fazia-lhe bem e corria-lhe, agitada e misturada com lágrimas, pela fronte; recordações pouco nítidas do que havia visto no sonho, expulsavam-se mutuamente. Era como se alguém tivesse abusado de Tobias e, de modo tão pavoroso que, ainda, ao pensar nisso parecia que o coração lhe parava de bater. Havia também outra coisa de que se lembrava nitidamente: a aparição da mulher que morrera. Vinha de algures, lá longe, num dos carris, andrajosa e entrara na barraca sem sequer olhar à sua volta e, finalmente – aqui a recordação era esbatida – havia, por qualquer razão, só com grande dificuldade continuado a andar e mesmo sucumbido por várias vezes. Thiel continuava a meditar, e agora sabia que ela fugira. Não havia a mínima dúvida! Então, por outro lado, porque é que ostentava ela esse olhar para trás assustadiço, horrível, a andar vagarosamente, muito embora os pés se lhe recusassem a fazer o seu trabalho?!
Era no entanto algo que ele guardava consigo, bem guardado, adormecido, murcho, medonho, e o modo como olhava para isso fazia-lhe lembrar cenas do passado. Pensava numa mulher, morta logo a seguir ao dar à luz uma criança de que teve que se separar, permanentemente, com uma expressão de profunda amargura, uma aflição inconcebível, de que mal podia alhear-se, precisamente o que sente um pai ou uma mãe. Onde fora ela parar? Isso não sabia. Mas era para ele evidente que havia renunciado a ele, que não reparara nele, afastara-se dele paulatinamente cada vez mais, a arrastar-se através da tempestuosa e escura noite. E pôs-se a chamá-la: «Minna, Minna» e acordou.
Duas luzes vermelhas atravessavam o escuro como olhos arregalados de um monstro enorme. Um brilho sanguíneo era projectado por elas, que as gotas de chuva transformavam, no seu cone, em gotas de sangue. Era como se estivesse a chover sangue do céu. À medida que o comboio se aproximava, Thiel sentia um grande temor; sonho e realidade misturavam-se como se constituíssem uma unidade. Continuava a ver a mulher a deambular pela linha, e a sua mão progredia em direcção à cartucheira, como se tivesse a intenção de parar o vociferante comboio. Felizmente já era muito tarde, as luzes tremeluziam-lhe em frente dos olhos e o comboio passou veloz.
No resto da noite, Thiel já não conseguiu encontrar sossego no seu trabalho. Apetecia-lhe estar em casa. Ansiava por ver Tobiaschen. Sentia-se como se estivesse dele separado há anos. Finalmente acabou por ficar numa aflição crescente por causa do estado de saúde do garoto, de tal modo, que por várias vezes tentou largar o serviço. Afim de passar o tempo, decidiu-se, logo que amanheceu, a inspeccionar o troço da linha. Com um pau na mão esquerda e uma grande chave de parafusos na direita, seguiu logo pelo dorso de um carril à luz pardacenta do crepúsculo. Aqui e ali, ajustava um parafuso ou batia numa das redondas hastes de ferro, que ligavam os carris entre si. A chuva e o vento tinham-se ido embora, e entre magras camadas de nuvens tornava-se visível de vezes em quando uma abertura azul e branca do céu. O monótono bater das solas em cima do duro metal, misturadas ao apático barulho das árvores a abanar as gotas de água, acalmavam gradualmente Thiel.
Às seis horas da manhã ficou livre e pôs-se sem tardança a caminho de casa.
Estava uma magnífica manhã de sábado. As nuvens haviam-se esfarrapado e afastado das vizinhanças. O sol abriu, moldando-se como se fora uma enorme pedra preciosa cor de sangue a brilhar por cima da floresta, em afiadas linhas de feixes de raios, através da confusão dos troncos; ali, uma delicada ilha distante, cujos cimos entrelaçados se emparelham, a brilhar, mais além líquenes de prata acinzentada do fundo do bosque a virar corais vermelhos. Dos cimos, dos trocos e das ervas, flui o ígneo orvalho. Um dilúvio de luz jorra por cima da terra. Detém-se o frio no ar, que penetra até aos ossos, e atrás de Thiel esbatiam-se as fantasmagorias da noite que desapareceram totalmente no momento em que entrava no quarto e viu Tobiaschen, de rosto corado e deitado na cama com o sol a bater-lhe.
Bem! Durante todo o dia pensou Lene ter visto nele por várias vezes algo de estranho; assim, na cadeira da igreja, quando ele olhava para o livro, ela própria espreitava de lado e ao almoço quando ele, sem dizer palavra pegou no pequeno, que Tobias levara para a rua como de costume, pelo braço e o pôs ao colo. Mas, para além disto, mais nada de especial se notara nele.
Thiel, que durante todo o dia se não deitara, arrastou-se para a cama quando eram nove da noite, já que na semana seguinte o serviço era de dia. Justamente quando se preparava para dormir, descoseu-se a mulher a dizer que na manhã seguinte tinha que ir com ele para o bosque afim de cavar a terra e semear batatas. Thiel encolheu os ombros; embora completamente acordado, manteve os olhos fechados. Já é mais que tempo, disse Lene, e acrescentou que tinha de levar as crianças já que provavelmente estaria fora o dia todo. O guarda resmungou algumas palavras incompreensíveis, a que Lene já não prestou atenção. Tinha-lhe voltado as costas e pôs-se a desabotoar o colete e a baixar as saias à luz de uma vela de sebo.
Repentinamente, voltou-se e, sem ela própria saber para quê, pôs-se a olhar para o rosto baço, alterado pela paixão do marido que ela, meio levantada, com as mãos na borda da cama, com olhos de fogo fixava.
«Thiel!» – exclamou a mulher meio amedrontada e como um sonâmbulo chamou pelo nome do marido, despertou-o da sua anestesia; tartamudeou algumas palavras confusas, voltou a pôr a cabeça na travesseira e puxou a coberta para as orelhas.
Lene foi a primeira a levantar-se na manhã seguinte. Sem fazer barulho, preparou tudo o que era necessário para o passeio. Colocou o mais pequeno no carro de bebé, depois foi acordar e vestir Tobias que quando soube para onde ia, não pôde deixar sorrir.
Depois de tudo pronto e o café preparado em cima da mesa, acordou Thiel. O seu primeiro sentimento foi de desassossego, ao deparar com todos aqueles preparativos. Bem gostaria de ter dito uma palavra de impugnação, mas não sabia por onde começar. E que espécie de argumento válido poderia ele ter apresentado? A pouco e pouco, começaram então os rostos alegres a exercer a sua influência sobre ele, de maneira que, finalmente, devido à alegria com que o garoto preparava o passeio, não pensou mais em opor-se.
Todavia, a caminhada através do bosque não foi feita para Thiel sem preocupação. Empurrava o carro com dificuldade pela areia profunda e tinha lá colocado toda a espécie de flores que Tobias arranjara. O petiz estava excepcionalmente feliz. Saltitava com o seu boné de pelúcia por entre os fetos para cá e para lá e procurava de uma maneira muito desajeitada apanhar as delicadas libelinhas que por ali esvoaçavam. Apenas chegados, começou logo Lene a inspeccionar o terreno. Despejou o saquito com as batatas partidas em pedaços que havia trazido para semear em cima da relva da orla de um tufo de bétulas, ajoelhou-se e passou pelos dedos um pouco de areia colorida escura.
Thiel observava-a com curiosidade: «Então?! Que achas?»
«Tão grande como o cantinho do Spree.»
O guarda sentiu como que um peso em cima do coração. Temera que não estivesse satisfeita e pôs-se a coçar a barba.
A mulher, depois de ter comido uma grossa côdea de pão, tirou o lenço e o casaco e começou a cavar com a velocidade e perseverança de uma máquina.
Apenas parava um momento, de tempos a tempos, em que se levantava para respirar profundamente, ou um pouco muito à pressa quando arquejante e o peito transpirava em bica.
«Tenho de festejar e o Tobias vai comigo», disse para ela o guarda passado um bocado, da plataforma frente à barraca.
«Ah, pois – estupidez» responde-lhe ela «e quem fica para tomar conta do pequeno? – Para aqui é que tu vens!» retrucou ela ainda mais alto, enquanto o guarda, sem que ela se apercebesse, desaparecia com Tobiaschen.
No primeiro momento pensou em começar a correr, mas a perda de tempo acabou por a decidir a ficar. Thiel seguiu pelo caminho com Tobias, que não ia muito entusiasmado; era tudo novo e estranho para ele. Não compreendia para que serviam aqueles carris negros e estreitos, aquecidos pelo sol. E continuamente fazia perguntas estranhas. Ficava principalmente admirado com o soar dos postes telegráficos.
Thiel conhecia cada som de per si da sua zona, de modo que sabia sempre, de olhos fechados, em que parte do caminho se encontrava. Ficava, frequentemente, com Tobiaschen pela mão, de pé, a ouvir os maravilhosos sons que saíam da madeira tal como se de torrentes de corais a elevar-se de uma igreja se tratasse.
O poste a sul da zona tinha um acorde carregado e harmonioso. Era um aglomerado de sons no seu interior que acordavam em uníssono, ininterruptamente e Tobias fazia círculos à volta da carcomida madeira para, como pensava, através dos buracos descobrir o autor do ressoar. O guarda ritmava solenemente como na igreja. Para além disso distinguia uma voz que lhe fazia lembrar a falecida mulher. Imaginou que seria um coro de sacrossantos espíritos no qual ela misturava também a sua voz, e a imagem despertava-lhe a saudade, uma emoção que chegava até às lágrimas.
Tobias pediu algumas flores das que se encontravam na pequena mata de bétulas e Thiel, como sempre, fez-lhe a vontade.
Pedaços de céu azul pareciam pousar em cima do bosquezinho, de tal modo maravilhosamente espessas eram as suas pequenas flores. Silenciosamente, as borboletas faziam esvoaçar e flutuar ao vento, galhardetes igualmente coloridos, por entre o brilho branco dos troncos, enquanto através de delicadas folhas de nuvens da cruta das bétulas um suave tombar acontecia.
O garoto colhia flores, e o pai era espectador. De vezes em quando, este levantava o olhar e procurava o céu através dos espaços entre as folhas que, uma imensa, imaculada superfície azul de cristal, detinha a luz doirada do sol.
«Pai, Deus é isto?» perguntou repentinamente o garoto apontando para um tronco destacado a que um esquilo castanho, com ruído roçagante, trepava.
«Seu tontinho», foi tudo o que Thiel pôde responder, enquanto pedaços da casca do tronco caíam à frente dos seus pés.
A madrasta continuava a cavar quando Thiel e Tobias regressaram. Metade do terreno estava agora revolvida.
Os comboios seguiam-se uns aos outros em curtos lapsos de tempo e Tobias ficava de boca aberta sempre que passavam vociferando.
Mesmo a mulher achava graça aos seus trejeitos.
O almoço, composto de batatas e uns restos de porco assado, foi comido na casita. Lene estava asseada e também Thiel parecia querer o inevitável com boas maneiras. Conversou com a mulher durante a refeição sobre toda a espécie de assuntos abrangidos no âmbito da sua profissão. A certa altura ela perguntou-lhe como era possível um único carril conter quarenta e seis parafusos, senão mais.
De manhã, ela cavou a terra; Á tarde, semeou as batatas.
Fez questão de Tobias tomar conta do bebé, e levou-o com ela.
«Presta atenção», gritou-lhe Thiel, cheio de repentina preocupação, «Presta atenção afim de que não se aproxime demasiado dos carris.»
Um encolher de ombros foi a resposta de Lene.
O comboio silesiano fora anunciado e Thiel tinha de estar no seu posto. Mal chegou, após ter acabado de jantar, à passagem de nível que o ouviu a acercar-se rugindo.
Via-se o comboio – aproximava-se – com as suas incontáveis baforadas de vapor sibilante a sair da negra chaminé: uma – duas – três golfadas brilhantes e leitosas, rectilíneas, para cima e logo a seguir, a atravessar o ar, o apito da locomotiva. Três vezes seguidas, curto, áspero, inquietante. Estão a travá-lo, pensou Thiel, mas porquê agora? E de novo o penetrante apito de emergência estridindo, ecoando, desta vez, em longa e ininterrupta toada.
Adiantou-se afim de dar uma vista de olhos. Mecanicamente tirou a bandeira vermelha do estojo e seguiu com ela diante de si pela via-férrea.
«Jesus! Mas será que estava cego? Jesus! Ai meu Deus, meu Deus! O que aconteceu? Ali! – ali no meio dos carris..., alto!» grita o guarda com toda a força que pode. Demasiado tarde! Uma massa escura ficara debaixo do comboio, entre as rodas, como pastilha elástica, aqui e ali, atirada fora. Um momento mais e ouviu-se o chiar e ranger dos travões. O comboio parou.
A monotonia do troço de via transforma-se em bulício. Revisor e maquinista correm pelo cascalho para a cauda do comboio. De todas as janelas, rostos de olhar curioso e depois a turbamulta avançou enovelando-se.
Thiel arquejava; tinha de se controlar afim de se não deixar ir abaixo como um animal abatido. Estavam, de facto, a acenar-lhe.
«Não!»
Um grito sobreveio do local do desastre rasgando o ar, e um uivo semelhante ao de um animal lhe sucedeu. Mas o que foi?! Lene?! Não era a voz dela, mas no entanto...
Um homem aproxima-se correndo ao longo da linha.
«Guarda!»
«O que há?»
«Um desastre» … O mensageiro recuou assustado pois que ao guarda transtornou-se-lhe o olhar. O boné inclinava-se-lhe para a frente e os cabelos ruivos pareciam eriçar-se-lhe.
«Ainda está vivo, mas talvez não resista.» Um arquejar foi a única resposta. «Venham depressa, depressa!»
Thiel move-se com um esforço tremendo. Os seus músculos relaxados retesam-se; ergue-se, o seu rosto fica estupidificado e morto.
Corre com o corpo, não repara nos rostos pálidos de morte e amedrontados dos passageiros às janelas do comboio: uma senhora jovem que grita para fora, um comerciante com um fez, um par jovem aparentando estar em viagem de lua-de-mel! Mas o que tem ele a ver com isto? Nunca se incomodara a olhar para o interior destas caixas barulhentas…
O seu ouvido apercebeu-se dos gritos de Lene. Tudo era confuso aos seus olhos, um sem fim de pirilampos… recuou amedrontado – parou. Na dança dos pirilampos, tudo lhe parecia pálido, indolente, ensanguentado. Uma fronte, castanha e azul, lábios azulados a pingar por cima do sangue preto. «É ele!»
Thiel ficou em silêncio. O seu rosto ganhou uma palidez terrosa. Começou a rir como se estivesse longe; por fim inclinou-se; sentiu os flácidos membros, mortos, a pesar-lhe nos braços; a bandeira vermelha enrolava-se. Ele vai.
Mas para onde?
«Para o médico dos caminhos-de-ferro, para o médico dos caminhos-de-ferro», dizia em confusão.
«Nós levamo-lo imediatamente», disse o carregador-chefe, e preparou uma cama no seu vagão de casacos de trabalho e livros.
«Então?»
Thiel não faz qualquer menção de deixar o ferido. As pessoas pedem-lhe com insistência. Tudo em vão. O carregador-chefe manda buscar uma padiola ao furgão e manda alguém acompanhá-lo.
Tempo é dinheiro. O apito do maquinista soa. Moedas chovem das janelas.
Lene comporta-se como uma louca. «Coitadinha da mãe», ouve-se dizer nos compartimentos «Pobrezinha!».
O maquinista apita mais uma vez, a máquina arranca branca de vapor sibilante que se escapa dos seus cilindros retesando o seu vigor; uns segundos apenas e o comboio-correio ruge com ofegantes bandeiras de fumo em velocidade redobrada através da floresta. O guarda, já menos perturbado, coloca o jovem semimorto na maca, exibindo o corpo arruinado, notando-se de vezes em quando um arfar crepitante do peito esqueletizado, visível por sob a camisa despedaçada. Os bracinhos e as perninhas, que não estão partidos apenas nas juntas, enformam as posições mais esquisitas. O calcanhar do pequeno pé encontra-se girado para a frente. Os braços caem desamparado pela borda da padiola.
Lene continuava com a sua gritaria; Todos os traços da sua anterior obstinação desapareceram do seu carácter. Repete constantemente uma história afim de se livrar da culpa do desastre.
Thiel parece não dar conta dela; com terrível e apavorada expressão, os seus olhos estavam cravados na criança.
Tudo em volta ficou reduzido ao silêncio – um silêncio de morte. Pretos e brancos seguem os carris apoiados no ofuscante cascalho. O meio-dia acabou por sufocar o vento e, como uma pedra, assim se patenteava a floresta.
Os homens conversam baixinho. Para tomar o caminho mais rápido para Friedrichshagen, é preciso regressar à estação que fica na direcção de Breslau, uma vez que o comboio seguinte, um comboio rápido de passageiros, não pára nas proximidades de Friedrichshagen.
Thiel parece reflectir se deve ou não ir. De momento não se encontra lá ninguém que perceba do trabalho. Com um gesto estúpido, a mulher acena-lhe para pegar na padiola. Não se atreve a contrariá-lo, muito embora preocupada com o bebé que deixou para trás. Ela e o desconhecido levam a maca. Thiel acompanha o comboio até à fronteira da sua circunscrição, depois permanece sentado olhando-o longamente. Repentinamente bate com a mão na testa e rezinga um bom bocado. Parece que acorda. Deve ser um sonho como o de ontem, diz de si para consigo. – Em vão. – Mais a cambalear do que a correr chega ao casinhoto para cair logo à entrada, com o rosto no chão. O boné rola para um canto, o relógio, meticulosamente cuidado, cai-lhe do bolso, o estojo salta, o vidro parte-se. Era como se uma mão de ferro lhe apertasse o pescoço, com tanta força que não o deixava mexer-se, obrigando-o a gemer e a queixar-se, enquanto se esforçava por se libertar. Tinha a fronte gelada, os olhos secos, a garganta a escaldar.
O martelar do sino acordou-o. Sob a impressão de uma repetição de três pancadas o acesso passou. Thiel foi capaz de se levantar e fazer o jantar. Mas os pés pesavam-lhe como chumbo e o troço da via rodopiava à sua volta como raio de uma roda gigante cujo eixo era a sua cabeça; mas teve força suficiente para se manter de pé, pelo menos por algum tempo. O comboio de passageiros chegava. Tobias devia estar lá dentro. Quanto mais se aproximava, mais nubladas se lhe tornavam as imagens diante dos olhos. Por fim via apenas o corpo despedaçado do pequeno com a boca cheia de sangue. Imediatamente a seguir tudo ficou escuro como breu. Passado um bocado recobrou a consciência. Tinha desmaiado. Viu-se turvamente junto à barreira, estirado sobre a areia branca. Levantou-se, sacudiu a areia do fato e cuspiu a que tinha na boca. Tinha a cabeça um pouco mais aliviada e conseguiu pensar com mais clareza. No pequeno tugúrio a primeira coisa que fez foi apanhar o relógio do chão e colocá-lo em cima da mesa. Apesar da queda continuou a trabalhar. Durante duas horas contou os minutos e segundos enquanto imaginava o que poderia ter acontecido com Tobias: aí vem ele com a Lene; agora está o médico a examiná-lo; está decerto a observá-lo, toca-o e abana a cabeça.
«Mau, muito mau – mas talvez... quem sabe?» E averigua melhor «Não», diz a seguir «não, já passou.»
«Passou, passou», gemeu o guarda. Logo a seguir endireitou-se a revirar os olhos fixados no tecto, com as mãos erguidas e punhos inconscientemente cerrados e uma voz que parecia que havia de mandar pelo ar a apertada habitação: «Ele tem de viver. Digo-te que tem de viver.» E já empurrava de novo a porta da casinha através da qual irrompera o fogo do crepúsculo e acelerava à medida que se dirigia para a passagem de nível. Aqui permaneceu um bocado, como que aparvalhado; repentinamente avança, de braços abertos, até ao meio do talude como se quisesse deter alguma coisa que se aproximasse na mesma direcção do comboio. Aí, os seus olhos abertos pareciam ter ficado cegos. Regressando a passos largos, parecendo render-se ante algo, começou a falar por entre dentes, semi-inteligível: «Olha lá – ouves? – fica – olha – ouve – fica – devolve-mo – tornou-se azul acastanhado – sim, sim – está bem – hei-de pô-la azul e castanha outra vez – ouves? – restitui-mo»
De braços caídos, implorante, a insurgir-se, entesa os olhos e tapa-os com uma das mãos, mais uma vez à descoberta do quimérico. A seguir deixa cair a mão e a expressão tensa do seu rosto metamorfoseia-se em sombria inexpressividade. Volta-se e regressa arrastando-se pelo caminho por onde viera.
O sol lança o seu último brilho por sobre a floresta e desaparece. Os troncos dos pinheiros alargam-se carregando como que em camadas bafientas de ossos desbotados e podres os intervalos dos cimos.
O martelar de um pica-pau cruzou o silêncio. Através do frio, uma única nuvem, cor-de-rosa, se avistava arrastando-se, atrasada, pelo céu. O vento, muito fresco, obrigava o guarda a tiritar. Tudo se lhe tornara novo, estranho. Ele não sabia o que era, nem para onde ia, nem tão pouco o que o rodeava. Um esquilo deslizou veloz pelo caminho e Thiel pôs-se a reflectir: tinha de pensar em Deus, sem saber porquê. «Deus saltou pelo caminho, Deus saltou pelo caminho.» E repetiu a mesma frase por várias vezes, de algum modo a ver se conseguia relacioná-la com alguma coisa. Algo cintilou na sua mente: «Meu Deus! Mas isto é uma loucura!» Esqueceu tudo e voltou-se contra este novo inimigo. Procurou pôr em ordem os seus pensamentos, mas em vão! Era um inconstante divagar. Deu-se conta das disparatadas reflexões e estremeceu perante a impotência da sua consciência.
Do pequeno bosque de bétulas emergia um chilrear de crianças.
Foi o sinal para disparatar furiosamente. Quase contra vontade foi obrigado a correr para o bebé, com quem ninguém se preocupara mais, que encontrou sem cama a espernear e a chorar no carro. O que ia ele fazer? O que queria fazer? Um violento turbilhão de pensamentos e sentimentos respondeu a estas perguntas.
«Deus saltou no caminho». Queria saber o significado. «Tobias» – foi ela que o matou – foi ela, a Lene – havia-lho confiado – «Madrasta, mãe desnaturada», disse entre dentes, «e o fedelho está vivo.» Uma névoa de vergonha obscurecia-lhe o sentido das coisas: dois olhos de criança penetravam-no; sentia algo mole, suculento, por entre os dedos. Gorgulhante e silvante entoação, entremeada de gritos roucos que não sabia quem tocariam no caminho, quem poderia escutá-los.
A sensação seguinte é a de lacre aquecido a gotejar-lhe no cérebro e a transformá-lo num molde. Retomando a consciência, apercebe-se do bater das horas do relógio, a vibrar através do ar.
Com uma das mãos procura agarrar a garganta da criança, que desaparece ao tentar fazê-lo. – Correu para o ar e começou a tossir e a gritar.
… Está vivo! Deus seja louvado, está vivo! Ao mesmo tempo que não deixa escapar esta sensação, precipita-se para a passagem de nível. Uma fumaceira negra, que o arfar de uma locomotiva atrás de si, a lembrar o aflitivo respirar intermitente de um gigante doente, lança para o ar, distingue-se, um pouco mais longe, por cima do troço de via, a ser empurrada pelo vento para o chão.
Uma fria luz crepuscular cobre a zona.
Passado um bocado, após as nuvens de fumo se apartarem, Thiel reconheceu o comboio transportador de cascalho que regressava vazio de carga e com os trabalhadores que haviam laborado no troço de via durante o dia.
O comboio tinha um tempo de percurso suficiente lato de molde a parar em todo o lado em que houvesse trabalhadores da via a recolher e apear aqui e ali; começou a travar um bom pedaço antes da casota de Thiel. Uma grande chiadeira, um estrugir e matraquear enorme e um ranger desagradável penetraram largamente o silêncio da tardinha, até que num único e bastante longo e estridente som, se imobilizou.
Cerca de 50 trabalhadores e trabalhadoras, quase todos em pé, se distribuíam pelos vagões de brita, estando alguns dos homens de cabeça descoberta. Uma solenidade enigmática transparecia daquele conjunto, elevando-se um cochichar logo que avistaram o guarda. Os mais velhos tiravam os cachimbos dentre os dentes amarelos e seguravam-nos respeitosamente na mão. Aqui e ali, uma mulher voltava-se para se assoar. O maquinista apeou-se e dirigiu-se para Thiel. Os operários viram como ele lhe apertava solenemente a mão, após o que Thiel, num andar quase marcial se dirigiu para o último vagão. Nenhum dos operários se atreveu a dirigir-lhe a palavra, embora todos o conhecessem.
Alguém transportava o pequeno Tobiaschen.
Estava morto.
De rosto lívido e olhos pisados, Lene seguia-o.
Thiel nem sequer olhou. Ela porém amedrontou-se quando viu o marido: tinha o rosto chupado, os pelos da barba colados, o cocuruto da cabeça pareceu-lhe mais grisalho. Sinais de lágrimas, enxutas, notavam-se-lhe por todo o rosto, uma luz incerta a pairar-lhe nos olhos… Ficou horrorizada.
Trouxeram de novo a padiola afim de poderem transportar o cadáver.
Um tremendo, fatídico silêncio imperou durante um bocado. Uma profunda, terrível meditação se apoderara de Thiel. Anoitecera. Uma manada de corças atravessava a linha. O gamo parou no meio da via. Olhou curiosamente em volta e, ao apitar da máquina, desapareceu como um raio em direcção ao rebanho. No preciso momento em que o comboio começou a andar, Thiel sucumbiu. O comboio voltou a parar, ficando à disposição para fazer tudo o que se pudesse. Entretanto, decidiu-se levar o cadáver para a casa do guarda, e levar este, uma vez que não conseguiam reanimá-lo, para casa na padiola.
E assim foi. Dois homens trouxeram a maca com o homem sem sentidos, seguido de Lene que, a soluçar incessantemente, com o rosto inundado de lágrimas, empurrava o carinho com o bebé pela areia fora.
No fundo do vale, uma enorme esfera, a lua, incandescente, purpúrea, assentava por entre os pinheiros no fundo do bosque. Quanto mais acima se movia, mais parecia que diminuía de tamanho e de vivacidade. Finalmente, acabou por se assemelhar ao farol de um automóvel, a sobrepujar a floresta, através de todas as fendas e lacunas dos cimos, com uma luz premente, baça, aprazivelmente brumosa que dava aos rostos dos caminhantes uma tonalidade cadavérica. Vigorosamente, mas com muito cuidado, caminhava a comitiva, ora através de espessas matas jovens, ora, de novo, através de esguias plantações de árvores, onde a pálida luz se tivesse espartilhado em grandes poças de água escura. Thiel, completamente alienado, de vezes em quando arquejava ou começava a devanear.
Repetidamente, de punhos cerrados, olhos fechados, procurava levantar-se.
Era com esforço que o levavam ao longo do Spree; pela segunda vez tiveram de ir buscar a mulher e a criança.
Logo que atingiram a colina da aldeia, satisfizeram a curiosidade de alguns habitantes que logo espalharam a notícia do desastre, pondo toda a gente a caminho para ver o que se passava.
Em presença das pessoas conhecidas, começou logo Lene a lamuriar-se outra vez.
Subiram as escadas de casa com o doente com dificuldade, e colocaram-no logo na cama. Os operários regressaram logo afim de ir buscar Tobiaschen.
Pessoas velhas e experientes aconselharam compressas e Lene seguiu as instruções cuidadosamente, com zelo. Colocou-lhe na fronte lenços das mãos ensopados em água da fonte muito fria e substituía-os logo que ficavam quentes, observando, aflita, a respiração do doente que a cada minuto parecia ficar mais regular.
A excitação do dia, porém, afectou-a, pelo que decidiu dormir um pouco, não obtendo todavia nenhum repouso.
Quer abrisse ou fechasse os olhos, lá vinha o fluir constante dos acontecimentos passados. O bebé dormia. Preocupara-se pouco com os seus hábitos anteriores. Tornara-se simplesmente outra. Nem um vestígio da sua anterior teimosia. Na verdade, este homem, de rosto brilhante de palidez, controlava-a no sono.
Uma nuvem obscureceu a lua, o quarto ficou mais escuro e Lene ouvia agora apenas a difícil, mas regular respiração do seu homem. Pôs-se a pensar se devia acender a luz. Era inquietante o escuro para ela. Quando quis levantar-se, os membros pesaram-lhe como chumbo, as pestanas cerraram-se-lhe e adormeceu. Passadas algumas horas, quando os homens regressaram com o cadáver da criança, encontraram a porta da casa escancarada. Admirados com esta circunstância, subiram as escadas para o piso superior cuja porta se encontrava também aberta. Alguém chamou repetidas vezes pela mulher sem no entanto obterem resposta. Por fim riscou um fósforo na parede cuja luz relampejante descobriu uma horrível devastação.
«Assassino, assassino!»
Lena jazia banhada em sangue, com o rosto irreconhecível e o crânio despedaçado.
«Matou a mulher, matou a mulher!»
Toda a gente ficou desnorteada. Vieram os vizinhos e alguém se apercebeu do berço. «Meu Deus do céu!» E retrocedeu, lívido de olhar fixo e horrorizado. No berço, com a garganta cortada, jazia a criança.
O guarda desaparecera; as investigações levadas a efeito logo na mesma noite, foram infrutíferas. Na manhã seguinte foi encontrado pelo guarda de serviço, sentado no meio dos carris, no local onde Tobiaschen havia sido atropelado. Tinha nas mãos o pequeno gorro castanho E acariciava-o como algo que tivesse vida. O guarda fez-lhe algumas perguntas não obtendo no entanto qualquer resposta e depressa se apercebeu que estava a lidar com um louco.
Então resolveu enviar uma mensagem telegráfica a pedir ajuda.
Vários homens chegaram e tentaram convencê-lo amigavelmente a abandonar os carris. Tudo em vão.
O comboio rápido, que passava nessa altura, foi forçado a parar e a tripulação só à força conseguiu, enquanto o doente berrava ameaçadoramente, afastá-lo do troço da via.
Tiveram de o atar de pés e mãos e, entretanto foi pedido controle policial afim de o transportar para prisão preventiva em Berlim, donde foi transferido, logo no dia seguinte para secção de alienados mentais
da Charité. Quando da hospitalização ainda não havia largado o bonezinho castanho acarinhando-o com desvelo e muita ternura.
→ fim
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sexta-feira, 18 de janeiro de 2008
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